1. |
||||
Ela pede para ser adormecida
com histórias de heroínas a dormir
ela pede para ser embalada
com palavras do agora sempre dantes
ela pede para ser acordada
com olhares fixos como estrelas
e estrelas movediças como olhos
ela pede para ficar mais um pouco
diante do bailado das sombras
ela pede que lhe entreguem a carta em mão
e lhe emprestem a mão por algum tempo
ela pede que lhe recordem o nome do presente em fuga e apaguem a data do instantâneo a
cores
ela pede a mentira e o desmentido
dentro de uma caixa do tamanho da boneca
com a boneca a tornar-se falante
ela pede para ser levada em braços
adormecida até à outra margem do repouso
ela pede para ser levada pelo nariz
até à origem do perfume embriagante
ela pede para não ser reconhecida como sonhadora mas antes como expressão da penúria
sublime
ela pede para ser espanejada
como aquela pequena biblioteca
composta pelos livros a levar
para a tal ilha certa e deserta
ela pede tudo o que a perde
paragens, paradeiros
ela pede o que não tem parança
dança quando arde, arde enquanto dança
ela pede para esquecer muito
até se lembrar de tudo
ela pede a festa do estudo
até adormecer sobre a fuga das letras
e sobre o fulgor da noite analfabeta
|
||||
2. |
||||
Quando eu era pequena
metade monstro, metade bela
tinha medo de esquecer
as vozes dos que partiam
ou partiriam
e eu amara.
Fechava os olhos
e lembrava um por um
o timbre, o volume e o brilho
daquelas vozes já mentais
mas ainda sem fantasma
que se deixasse habitar.
Agora, se abro os olhos
o mundo desaparece
e com ele meu amado;
por isso os guardo cerrados,
faço força para ver
línguas de ouro
lábios rubros
e atrás desse tapete
o sono de vez perdido.
Existia uma mulher
Com ciúmes de si própria
Essa mulher era eu
Mas não a miragem, nem o olhar que a olhava
Existia uma mulher
com ciúmes de sua própria imagem.
Essa mulher era eu
mas não a miragem
No baile de fumos e distâncias
a mais velha dança aos soluços
fazendo rir de si mesmos
todos os olhos enxutos.
A mais velha pensa assim:
não tenham medo que eu tenho.
Os medos medem-se aos palmos
e a coragem de ter medo
nunca muda de tamanho.
Percebem ou não percebem?
Que se lixe quem não pesca!
A velha é fresca não acham?
Mais gaiteira não se encontra...
A velha é a mais velha.
A velha é a mais velha história
é o mais velho começo
e o fim mais velho de todos
veio mundo com maus modos
e a modos que se despede
enquanto dança e soluça
muita parra e pouca uva.
Não lhe perguntem se chora
pois lágrimas come e bebe
é isso que a mantém viva.
Porque a vida não se escreve.
|
||||
3. |
||||
No dia em que descobri que as escadas tremem de frio
que os corredores se inundam para acolher raras mulheres cisnes que as telhas voam para imitar
as aves de arribação abatidas a tiro que as portas batem até alguém se dignar arrombá-las
dignamente que os vidros choram mais devagar que os olhos engolem lágrimas que os canos se
cruzam paralelamente no infinito da sujidade limpa que os candeeiros traduzem escuridão em
linguagem de luz
que os armários se enchem de fétidas aspas e hífenes perfumados que nesse dia era noite
diluviana em árida luz
fiquei fora de mim
e como sair desse lugar impróprio
sem voltar para dentro?
|
||||
4. |
Odd Ode
02:22
|
|||
Ela escreve cartas
aos amigos imaginários
e aos amores quase reais
Ela escreve cartas
ao pai ausente
e ao pai presente
Ela escreve
cartas de ameaça
cartas de louvor
cartas de pedido de desculpa
cartas de pedido de socorro
Ela escreve
cartas ditadas por fantasmas
cartas inspiradas noutras cartas
cartas anónimas
Ela escreve cartas
à mãe que não as lê
à irmã que não as entende
Ela escreve cartas
amarrota-as até fazerem bola
e lança-as ao cesto dos papéis
Ela escreve cartas
esperando que elas sejam roubadas
e lidas antes de chagarem aos destinatários Ela escreve cartas aos vizinhos
e aos parentes uniformemente afastados Ela escreve cartas cifradas
e passado algum tempo
nem seria capaz de as decifrar
Ela não sabe ler nem escrever
|
||||
5. |
Espelho e Escravo
02:28
|
|||
A menina descobre um dia
que atrás do espelho
não está ninguém.
Assim me ardem os olhos de nada ler.
A servidão das palavras
não me poupou a outros trabalhos
que das mãos alheias
para as minhas passavam.
A menina fugia
e as nossas vozes não a encontravam.
Sua sombra cresce no céu
cada vez que sonhamos imitá-la.
Vi o sol sepultar-se em mim
e nascer veloz no mercado negro
coroado de setas
beijado pela menina
e pela boca de outros atletas.
Há na palavra escravo
um espelho que me obriga a escrever.
E a única certeza
é a de não me ver.
|
||||
6. |
||||
Em sonhos ainda corro
como se comesse o como
os campos tanto se estendem
as flores caem de costas
e o céu se espreguiça muito
em sonhos busco desvio
chamo atalho ao simples facto de ter fome de ter frio
e a cada instante separo
de antemão a acção do acto escorro, escorrego e até esqueço o quanto já fui esquecida
as mortes que me mataram
e as outras que ao me abaterem me mantiveram em vida
colho o que não semeei
escolho não colher jamais
tudo o que me viu crescer
com os olhos pequeninos
das pedras ardendo ao sol
|
||||
7. |
A Vida depois da Vida
04:59
|
|||
No mesmo saco juntei
as pupilas, as papilas e os poros
mas a vista, o sabor, o tacto
que me transportavam até onde
eu não podia sentir nem imaginar
não aceitavam viajar em grupo
na mesma frase juntei
a fama, a fome, o frio
mas neste meu jogo de aceno de lenços quem devia partir já partira há muito
e eu lia e escrevia toda a velhice
nas novas linhas da palma da mão
na mesma sala juntei
todas as mãos capazes de segurar espelhos todas os chapéus amadores de voo
mas a corrente era de ar e apenas ar
mas a porta estava aberta e fechada
mas a janela ameaçava emparedar-me
na mesma vontade juntei
a fúria de quebrar versos
a viuvez de quebrar vidros
o jogo de quebrar ossos
mas as árvores descalçavam-se
em sua fervura de primavera
pela estrada sobem rebanhos
ou seja nuvens de aplausos
porém
nem pelos aplausos,
nem pelas vaias,
subiremos até às nuvens
e em lugar de estrada
o abismo abrir-se-á a nossos pés
|
||||
8. |
A Prosa ideal do Futuro
02:18
|
|||
Por que choras muro
quando eu quero que as noites se atropelem?
Teu pranto é de pedra.
Pudera…
E eu não posso deixar de ouvir-te
pois rio com vontade de chorar
e choro com vontade de continuar.
Ó muro da velha casa
que te vergas para apanhar
uma coisa brilhante.
Moeda? Estrela? Bilhete?
Um instante? Um alfinete?
Ou uma dor lancinante?
Entre ti e mim medrou
a fina flor da fúria
por acaso e por incúria.
Também ela dobra a espinha
e abana a cabecinha
e murcha de paixão
pela mão que a colheu
como eu.
Também ela nasce e morre
numa brecha
no dia em que o dia não começa.
|
||||
9. |
||||
seu vocabulário lunar
voa em volta de alta torre
do cimo da qual se salta
e ainda não se morre.
O mestre esvazia-se
mete mãos à obra
e pés ao caminho.
Gamela de silêncio
lhe vai atada ao tornozelo
chocalhando.
Como o tecido se desfaz de velho
assim o ouvido lhe baixa
a cada conselho amigo.
O mestre não busca
o desencontro das fontes fabulosas
nem o regresso dos fogos de vista.
O mestre despe
nossa roupa lhe vai presa à cinta
em parte rastejando.
O mestre diz
que a mesa é de jantar e é de jogo:
se agora bem comes, logo perderás.
Lambe pois o chão
e pisa o corpo.
De que se alimenta
quem nu não vai?
Olhar é meio sustento.
Sonhar talvez.
|
||||
10. |
Fuligem
06:01
|
|||
Alguém ensina a um principiante
— supondo que se principia —
os passos a dar
para ser admitido nessa roda. À tangente.
Seguros nem os ramos e certo nem mesmo o chão que pisamos.
Alguns cochicham. De que falam?
Falam de fuligem, evidentemente.
Desse pó em depósito que é preciso raspar...
Debaixo da camada negra aparece o não-texto.
Aparece é uma forma de dizer
pois nem toda a coisa aparecida
aspira a ser.
O não-texto tem pudor
o não-ser tem vergonha.
Tão duvidosa como estarmos aqui
é a vontade de permanecermos
de escaparmos à limpeza das lareiras
onde moram defuntas aranhas
presas no rigor de suas teias.
Segue em frente esse invisível que nos guia. Vai de rastos
soldado treinado para uma guerra distante por felicidade distante.
As sombras passam-nos rasteiras
tropeçar na sombra é nosso saber
a cada queda renovado.
Porque o mundo verdadeiro
deve ser o das sombras
doa a quem doer.
Só elas corrigem trajectórias
só elas nos atravessam
e ditam nosso tamanho.
Verdadeiro é tudo quanto muda
doa a quem não doer.
Entre os braços de quem ama
não há lugar.
E no fraco entendimento de quem sofre não há lugar.
É preciso roer as unhas ou cortá-las
a lua fora de cena
o sol batendo da nuca
o sósia de braço dado.
Ou
é preciso pendurar o sol pelos pés
e amarrar à tenra nuca
as unhas de cada frase.
Morrer vezes sem conta
se a tanto chegar a presunção
para encontrar o sono bom que se espalha pela casa
como brasa fugida à grande fogueira. Morrer as vezes que é preciso
ora bem ora mal acompanhado
até saber voltar de olhos fechados
a cavalo na curva dum sorriso.
Diz essa linha:
quem muito ama
ama mal quem ama.
Até lá seremos levados
pelo pensamento do pensamento
e de medo trememos
quando sentimos que o galope abranda.
Lá é o lugar de cá
onde começa a escrita
e esse desengano de poder ser lido
no livro que não se escreveu
pelos olhos que enfim nos choram.
Assim como noutro texto me desencontrei sei de fonte seca
que alguém me perderá de vista
porque em obras e pecados
minha morte se conquista.
|
Streaming and Download help
If you like Mãos no Fogo, you may also like:
Bandcamp Daily your guide to the world of Bandcamp